30 de março de 2016

Queremos a Mulata

Aizita Nascimento, Miss Renascença, 6º lugar no Miss Guanabara 1963, vencido por Vera Lúcia Ferreira Maia

Como quase todo mundo sabe, fiz parte dos olheiros que escolheram a Miss Guanabara deste ano. Doce tarefa! Sobretudo muito melhor do que fazer parte do juri para eleger um daqueles gigantes bolotudos, de músculos pulando fora do corpo, tipo Mister Universo, nos quais a robustez chega a parecer um abuso contra a natureza, e dos quais as próprias mães que os tiveram pequeninos, iguais aos outros, devem levar constantes sustos.
Mas se doce é a tarefa, nem por isso deixa de ser difícil. Entre seis mulheres de beleza equivalente, você, juiz, fica num drama de consciência terrível. Tem vontade de escrever o nome delas em papelinhos e de fazer o sorteio. Saiu a Riachuelo no lugar da Flamengo? Ou a Madureira no lugar da Fluminense? Quem manda não haver uma esmagadoramente bela para ganhar à primeira vista e deixar sem sentimento de culpa o juri e sem pretexto de vaias a torcida?
Acresce que a beleza, para a maioria do povo, não obedece a cânones: é uma opinião, ou melhor dizendo, uma sensação. Se tiver quadris bem roliços, se estiver mais para a tanajura do que para a Miss Universo, ganhará aplausos frenéticos ao longo de toda a passarela. O público não quer Donas Estátuas; quer Donas Boas.
É isso mesmo, meus amigos: eu sou uma esteta, vi de perto a Vênus de Milo, estou em excelentes relações com Fídias e outros "cobras" da estatuária, sei de cor as medidas julgadas ideais para um corpo feminino, tomei banho de sol com as mais certinhas de Saint-Tropez e de Portofino, mas o homem da arquibancada do Maracanãzinho não tem nada com isso. Se eu aprovo a cara, ele aprova a coroa. Jogamos com a mesma moeda de forma inconciliável: numa face a minha Vênus, a outra face a sua alucinante tanajura.
- É bonita, não resta dúvida, mas repare como é defeituosa de quadris.
- Defeituosa? O senhor acha defeito aquela generosidade de Deus? Então viva o defeito e, fique com aquelas achatadas, aquelas tábuas de passar a ferro?
- Um momento: o senhor conhece os cânones da beleza grega?
- E o senhor conhece os cânones da beleza mulata?
Havia uma mulata do Renascença Clube na passarela do Maracanãzinho. Uma cara bonita, com um sorriso desses que dão vontade de pegar a mulher no colo e sair com ela sorrindo entre filas de angustiados e vencidos. Um sorriso para cartazes de campanhas contra depressão, pró planos trienais, ou muito mais. Contagioso, sedativo, euferizante. Eu votei nela para uma das oito finalistas. Pelo seu sorriso, pela sua maneira de olhar deixando mel na menina dos olhos da gente, pela sua humanidade em não se sentir diferente das outras vinte e três por ter a pele mais escura.
Não poderia vencer o primeiro lugar porque havia outras de corpo mais bem feito e de rosto igualmente bonito, e certamente mais harmonioso. Era um pouco baixa e pecava também por aquele excesso característico da acima referida espécie de formigas. Que pensava o povo a respeito?
Ora, o povo! O povo achou, como sempre, que um caso desses, antes tanajura do que tábua de passar a ferro, e esquecendo seus clubes e suas candidatas passou a pedir em coro o primeiro lugar para ela:
- Queremos a mulata! Queremos a mulata! Queremos a mulata!
Tem havido vários "queremos" na história deste país, inclusive o queremos Vargas, mas queremos assim, inflamado e imperativo, du-vi-do. Era o grito do instinto, do sangue, e, em o percebendo, a mulata cada vez apurava mais o dengo e o ritmo do molejo, aumentando atrás de si as palmas que conquistara à sua frente, gloriosa na cara e ultraglamurosa na coroa.

Vera Lúcia Ferreira Maia, filha da cantora Nora Ney, vencedora do Miss Guanabara 1963.

Ah, meu caro Lincoln Gordon! Que pena não estar ao meu lado, na mesa julgadora, um daqueles racistas ferozes dos Estados do sul do seu país, para ver a escurinha vencendo vinte e três brancas diante do juri extra oficial de uns quinze mil homens, quase todos brancos! De toda aquela noite eu não guardo tanto a silhueta esportiva da filha da Nora Ney, a vencedora, como guardo o sorriso da mulatinha, símbolo do nosso anti-racismo da nossa cristandade igualitária. E em verdade vos digo que, nesta terra de gente igual pela alma, e não pela pele, a humanidade verá um dia ser proclamada mais bela do mundo uma negra cor de ébano ou uma mulata cor de canela. A musa de um Ataulfo, a musa de um Jamelão, pela vontade de Deus.


Henrique Pongetti - Revista Manchete, 06/07/1963

Em tempo: Henrique Pongetti faleceu em 1979, mas antes, em 1977, viu ser eleita a primeira Miss Universo negra, Janelle Comissiong, de Trinidad & Tobago.

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