31 de outubro de 2018

"Vai, Carlos, ser Molestado na Vida"

Carlos Drummond de Andrade era uma figura que todo mundo queria entrevistar, e ele, evidentemente, não se deixava entrevistar. Com a proximidade de seu aniversário, eu comecei a telefonar para a casa dele e ele atendia e falava: "Ah, tudo bem." Conversa, não sei o quê... aí chegava o momento crucial: "Drummond, olha, a gente queria fazer uma entrevista com você." Pronto, começava a tossir: "Cof, cof, cof. Estou muito doente, não estou podendo." E desligava o telefone. Uma vez, duas vezes, três vezes. Eu falei para o editor, que na época era o Humberto Vasconcelos, que já morreu, até: "Eu vou tentar, você me dá um tempo?' E ele me deu, porque isso era uma característica do Caderno B, confiar nos repórteres, dar tempo para investigação, para apuração.
Um belo dia, já com o endereço, eu saio... com a roupa que a gente usava mesmo. Peguei uma prancheta... não sei o que é que me deu, peguei uma prancheta e uma caneta BIC e cheguei lá no prédio onde o Drummond morava, na Conselheiro Lafayette, 60, em Copacabana, falando comigo mesma: "Eu vou subir." O máximo que podia acontecer era um guarda costas me atirar pela janela, né? Mas a gente tinha que tentar. Aí toquei a campainha, abre a porta o próprio Drummond. Eu fiquei apavorada, tão espantada que fiquei olhando para a cara dele. "Ah, já sei, você é uma estudante que veio conversar comigo, entra aqui." Abriu a porta e eu adentrei o apartamento.
"Senta aqui, eu vou trazer um chocolatinho pra você." Trouxe chocolate, conversou por quase duas horas, papo maravilhoso, e eu perguntava algumas coisas muito timidamente, porque fiquei mesmo em estado de choque.
Norma (a repórter que entrevistou o poeta) voltou para a redação e contou a Humberto Vasconcelos sua façanha. O editor perguntou:
- Você anotou?
- Anotei muito pouco, para ele não perceber que eu era jornalista.
- Então senta e escreve para não esquecer.
- Mas, Humberto, eu não posso publicar essa matéria. Não posso fazer isso com o Drummond, eu faria se fosse com o Newton Cruz, mas com o Drummond?
- Escreve para você guardar e me dá para eu ler.
Norma escreveu. E Humberto mandou direto para a oficina a matéria que foi, sim, publicada dois dias mais tarde, em 31 de outubro de 1977, exatamente no dia do aniversário de Drummond, na capa do Caderno, com direito à chamada na primeira página. Escreveu um texto primoroso, com a feliz ideia de entremeá-lo com trechos muito bem selecionados de poesias do entrevistado à revelia. Abria se desculpando. Mas não precisava. Ao lado da abertura fantástica, a entrevista - com perguntas e respostas que revelam a memória impressionante da "estudante" - demonstrava que o poeta gostara da conversa...
A matéria, ilustrada por fotos de Luiz Carlos David, se encerrava assim: Mas desde 1930, quando lançou seu primeiro livro - e ele tem muitos - Drummond perdeu o direito de não ser publicado, uma predição que seu anjo torto não incluiu. Ainda que a culpa de violentá-lo seja tão grande que seus próprios versos sejam usados como desculpa. Ainda que mal pergunte; ainda que mal respondas; ainda que mal te entenda; ainda que mal repitas; ainda que mal insista; ainda que mal desculpes; ainda que mal me exprima; ainda que mal me julgues...
E o que vale uma entrevista
se o que não alcança a vista
nem a razão aprende
é a verdadeira notícia?

*Newton Cruz que Norma não teria vergonha nem mágoa de enganar para entrevistar era ele mesmo, o então (e até praticamente o fim da ditadura) chefe da Agência Nacional do SNI (Serviço Nacional de Informações) o comando dos órgãos de repressão do regime militar.

Fonte: Livro "Jornal do Brasil - História e Memória", da jornalista Belisa Ribeiro.
Capítulo 5 - Cultura não é adereço: o Caderno B, entrevista feita pela jornalista Norma Couri, com fotos de Luiz Carlos David.

Sobre o poema citado no jornal:

Ainda que Mal

Ainda que mal pergunte;
ainda que mal repondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'

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