Monalysa Alcântara saiu do Piauí para conquistar o Brasil como miss. E ela pretende ir mais alto ao levar a mensagem feminista e antirracista para o mundo todo!
"Minha mãe sempre aceitou meu cabelo, elogiava meus cachinhos".
Ela tem só 18 anos e nunca saiu do país, mas quando você olha para Monalysa Alcântara, a Miss Brasil 2017, pensa que ela é mais experiente. Não pela aparência, claro. com rosto de boneca, a moça do Piauí fala firme e expõe suas ideias de maneira clara. Hoje, Monalysa mora sozinha em São Paulo. Terminou o Ensino Médio e começou a faculdade de Administração, mas teve que trancar pelo número de compromissos desde que ganhou o concurso. "Quero ainda fazer história, mas Administração era um curso importante para meus projetos", ela conta. Mas a grande habilidade é conquistar às pessoas: "Quando cheguei ao Miss Brasil, tinha quatro pessoas torcendo por mim. Quando eu saí, todo mundo", diz a mocinha, que disputa o Miss Universo. "Eu vou ganhar", ela garante. Quem duvida.
Você já disse que incomoda as pessoas. Por que?
Eu acho que quando nós, mulheres negras, entramos numa posição maior, seja miss ou diretora de alguma coisa, isso incomoda. É aí que identificamos quem é preconceituoso. Quando a Taís Araújo faz algo que chama a atenção, os racistas caem matando. São pessoas doentes. Elas realmente não suportam ver negros na TV ou acima deles.
Desde quando isso vem?
A primeira vez que senti isso na vida eu era muito nova. São pequenas coisas que a gente não percebe. Não é só alguém chegar aqui e dizer que odeia a mina cor. Quando eu era criança, percebia que as crianças bonitas e adoráveis, eram sempre as brancas. Na escola, na rua, onde eu brincava, as crianças mexiam no meu cabelo e diziam que era feio. Eu tinha 8 anos de idade e nem entendia o porquê dessa raiva. Mas aí com 13, 14 anos, comecei a assimilar como preconceito.
Por que você acha que isso parte de crianças?
Crianças de oito anos podem ser maldosas, mas não é delas. Não nascem assim. Criança entende: se você fica repetindo algo maldoso, ela vai entender que aquilo é o certo e vai levar isso para a vida. Por isso é importante os pais estarem em cima, saberem quem são os professores, o que estão ensinando... Eu já sofri preconceito até de professor! E os pais de crianças negras precisam entender que o país é extremamente preconceituoso e preparar essas crianças para a vida. "Filha, você é uma menina negra, tenha orgulho disso. Você precisa se defender. Vai acontecer muita coisa e é preciso estar pronta."
Você teve esse preparo?
Não. Foi a vida que me deixou pronta. Eu aprendi a identificar o preconceito e saber lidar com ele. Minha mãe, branca, não sabia lidar com isso. Minha avó, mesmo negra, tem preconceitos dentro dela, tem 82 anos e foi criada em outra época. E meu pai, negro, morreu quando eu tinha cinco anos de idade. Vivi uma solidão em relação a isso dentro de casa.
Quando isso mudou em você?
Fizemos um grupo sobre cabelos cacheados, eu e duas amigas, e conversávamos muito. As famílias brasileiras precisam encorajar, levantar a autoestima de seus filhos. Eu alisei muito o cabelo, perdi o cabelo. Minha mãe não entendia que não podia pentear ele seco. Meu sonho era pentear. "Por que meu cabelo não é liso?" eu pensava. "Seu cabelo natural é ruim. O cabelo liso é o que você precisa alcançar". Ninguém sabia lidar com isso. Aí entrei na adolescência e descobri através da internet como aceitar.
Como foi isso?
Vi vários vídeos e entendi como funcionava meu cabelo - e então compreendi que nunca poderia cuidar dos fios como se cuida de um cabelo liso. E nenhum dos dois é feio, e nenhum dos dois é mais bonito que o outro. Eu tinha que entender essa diferença e lidar com ela. Eu não gostava de me torturar, então tinha de aceitar que meus produtos eram diferentes, que tinha de cuidar de outra forma. Minha mãe sempre aceitou meu cabelo, elogiava meus cachinhos, mexia de baixo para cima. Mas minhas tias, primas, amigas na escola criticavam muito e queriam que eu alisasse.
E você obedeceu?
Sim. Eu perdi meu cabelo porque eu era uma criança. Sempre fui alta e as pessoas tentavam me envelhecer. "Ah, você já é uma mocinha". Eu só tinha 12 anos! Queria brincar na rua, sem ficar penteando. Uma tia minha decidiu que eu deveria alisar porque eu ia a um casamento. Eu fiquei empolgada, pensei: "agora ninguém vai me encher, vou ter cabelo liso para sempre!" Mas, na farmácia, estava sem pentear e os funcionários pensaram que eu tinha um tipo de fio diferente do meu. Resultado: deram os produtos errados para meu fios, que eram ondulados e não afro. Mas acho que qualquer produto seria forte para uma criança. Então, quando acordei, os cabelos caíram. Não totalmente, mas praticamente todo. Ficou cheio de buracos. Eu amarrei de um jeito que não dava para ver e fui levando. Fiz uma transição sem ninguém perceber... Alisar o cabelo é quase uma tortura. Eu fico revoltada quando vejo uma criança sendo obrigada a alisar ou sendo ensinada a fazer isso. E acontece sempre, até hoje, não só na minha família. Isso vai demorar muito para parar de acontecer...
Foi depois disso que você assumiu os seus cachos?
Sempre fui muito diferente. Meu sonho era ter emprego e sair de casa desde sempre. Eu descobri com 12 ou 13 anos que não queria alisar o cabelo, e sim assumir meu cachos. Foi antes dessa febre de manter cabelos naturais. Sempre fui diferente das outras, gostava de dançar, gostava de espelho apesar de não gostar muito do que via.
E hoje, como pessoa pública, quais suas maiores dificuldade?
Existe uma preocupação muito maior com tudo que eu faço e tudo que eu falo. As pessoas acham que é tudo flores, mas nem tudo posso fazer como eu fazia antes. Eu não posso fazer tudo...
O que você sente falta?
Sinto falta de comer as comidas do meu povo que são bem pior que hambúrguer na quantidade de calorias. E de sair para alguns lugares em que sei que hoje não terei mais paz. Não dá para curtir com meus amigos, o povo vem tirar foto até no banheiro. Eu não consigo dizer não. Eu sempre tiro a foto e converso. Já passei três horas tirando foto. E tudo vale a pena.
Existe um estereótipo da miss bonita e vazia, e você contraria isso...
Eu sou isso aqui que você está vendo. Falo disso com meu namorado, que é branco. Eu tento explicar por que o Brasil está como está hoje. Essa é minha vida. Falar de feminismo e racismo é meu papo sempre. Há tempos me posiciono de maneira indignada com o que está acontecendo. O concurso de Miss mudou muito, sempre soube que eles queriam uma mulher de personalidade. Então quando eu fui, eu não mudei. Mostrei como eu era. Pra mim é difícil porque foi de um dia para o outro que me adaptei a uma vida de holofotes. Mas eu busquei isso. Queria muito que as pessoas vissem uma Miss que falasse. E falo mesmo.
Você fala muito da Taís Araújo. Ela é um modelo pra você?
A Taís Araújo foi uma pessoa muito importante para mim, na minha aceitação. Ela se posicionou sempre. E eu quero ser uma Taís Araújo também. Alguém que representa a mulher negra e diz o que tem que ser dito de uma maneira forte. Não dá para ser uma só uma Taís Araújo num país com tantos problemas. Precisamos ser várias, para ajudar mais pessoas. Quando eu passei por meu processo de aceitação, entendi que eu era bonita e não precisava viver aquilo que estava vivendo, sofrer daquele jeito, eu quis passar isso para muito mais gente. Comecei a entender que a minha vida, minha história se repetia muito, somos milhares de mulheres negras. É um padrão que se repete há muito e muitos anos.
Dá para dizer que todo mundo pode ser Miss?
Todo mundo pode ser Miss. Todo mundo ria de mim que seria uma megamodelo famosa. Todo mundo ria de mim (fala pausadamente e frisa "todo mundo", com expressão séria). Diziam que eu era louca, sem noção, não sabia meu lugar. Minha família ficava preocupada que eu quisesse sair de casa, ir para outro Estado...
E você conseguiu...
Sim, apesar de tudo o que houve ser um susto para mim. E apesar de eu ter duvidado que conseguiria chegar lá algumas vezes, eu nunca disse isso alto. Posso ter pensado, mas da minha boca nunca saiu "eu não vou conseguir". O pensamento é forte, as palavras tem poder. Vejo qualquer coisa dando tudo errado eu penso: vai dar certo, vai dar certo. Eu pensava que com 18 anos teria isso, isso e isso. Estou com 18 anos e tenho até mais do que eu imaginava.
Qual o seu sonho agora?
Ganhar o Miss Universo. Quero mais que isso, leva minha mensagem para o Miss Universo e passar uma mensagem bonita. Aquela sensação de que fiz tudo que deveria ter feito. Quero ser uma modelo reconhecida, famosa. Quero ser um angel da Victoria Secret. Amo desfilar, a passarela é meu lugar. E eu nunca sonhei pequeno na minha vida. Sonhar é de graça.
Fonte: Revista Ana Maria, nº 1095, 06 de outubro de 2017.
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