23 de março de 2016

Onde Está a Beleza?

Uma miss não tem nada a ver com o excesso de peso das Vênus pré-históricas e quase nada com a falta de peso das modelos profissionais de hoje. É, quase sempre, uma jovem proporcionada. Mas seu título de rainha de beleza pode ser contestado. Com palavras, vaias, pedras de gelo e pedaços de pão. Mais de uma escolha de Miss Brasil já foi tumultuada com vaias. E pelo menos duas vezes, duas mesas de pista que acompanham a passarela, já partiram chuvas de pedras de gelo e de pedaços de pão, em sinal de protesto. Há ainda que, como o escultor carioca Jackson Ribeiro, contesta com palavras: "O concurso de Miss Brasil tem pouco de beleza e muito de comércio. E não pode ser de outra forma, pois não é possível encontrar um padrão de beleza universal que contente a todos. O que o concurso consegue é um tipo de mulher sem sal e sofisticado, que jamais consegue representar cem por cento a mulher brasileira. Por exemplo, uma beleza agreste ou nordestina fica inteiramente deslocada num certame caso esse, aonde não há lugar para mulheres que tenham traços diferentes e não se deixam transformar em bonecas".
Para a esteticista Janine Goossers, uma francesa que vive há onze anos em São Paulo, as misses de hoje têm pouco ou nada da mulher atual, que ela prefere chamar de "mulher do futuro" e define como "uma mistura de Babarella, Veruschka e Candice Bergen - alta, magra, de cabelos longos, rosto anguloso, corpo ágil e sadio. Janine acha que os traços regulares, delicados e angelicais que caracterizam a beleza clássica deram lugar a traços mais agressivos". "Esses traços", diz, "compõem rostos estranhamente belos, charmosos e incomuns e fazem a figura da mulher de hoje, a mulher espacial". Essa seria a mulher dos anos 70, como Jean Harlow, com seus cabelos louros platinados e crespos, foi o símbolo da década de 30, que admirou seu rosto de porcelana, os grandes olhos negros e a pequena boca vermelha; da mesma forma que Rita Hayworth conquistou os anos 40 com seu tipo "vamp: e a valorização do corpo; e do mesmo modo que Brigitte Bardot incendiou a década de 50 com seu modelado, ajustado à dança e ao esporte.
O concurso de Miss Universo, o mais importante dos três caça-níqueis do ramo (os outros dois são o Miss Mundo, em Londres e o Miss Beleza Internacional, em Tóquio) oferece na passarela de Miami Beach muito mais que a coroa, o cetro e o manto da rainha da beleza universal. É a brasileira Martha Vasconcellos, atual Miss Universo, quem diz: "O título é um contrato de trabalho estafante e sem trégua, com uma sucessão interminável de viagens e desfiles". A rainha em fim de reinado e sem poesia chega a lamentar até a falta de dinheiro. Martha confessa que por um ano de trabalho como divulgadora de uma indústria de maiôs - este é o trabalho das misses - ela está recebendo apenas 4.000 cruzeiros novos por mês (sem 13º), remuneração de onde tira toda a roupa que tem de usar, a maquiagem e até um refrigerante pedido num hotel.
É uma máquina internacional de fazer misses que, por concessão dá a grupos, nos diversos países, os direitos para explorarem o concurso. Assim, quando, a menor cidade do menor Estado do Brasil, algumas mocinhas se alvoroçam pensando no título, elas estão apenas entrando na engrenagem da imensa máquina que só nos Estados Unidos tem mais de mil empregados permanentes. Mas, apesar da máquina e do volume da divulgação, nem todas as barreiras são derrubadas. Há Estados onde o concurso não é visto com bons olhos pela maioria das famílias. Alagoas, por exemplo. Ali, tradicionalmente, a miss sai de uma escolha singular, por falta de possibilidade de realização do concurso: os encarregados da promoção indicam uma moça disposta a arcar com o título sem concorrentes, sem desfile e até sem muita divulgação.
Carmen Silvia Ramasco, Miss São Paulo e Miss Brasil 1967, renunciou

Carmen Silvia Ramasco, Miss Brasil 1967, que renunciou ao título para casar, segundo alguns, mas "simplesmente porque não suportava mais a escravidão", segundo ela mesma, não reclama, mas assegura que, até hoje lhe estão devendo um Volks, prêmio pelo título. Carmen Silvia garante que "ser miss é ser escrava e explorada a ponto de ter que tirar licença por ordem médica". Escrava ou não, a menina Miss começa a receber ordens desde que se candidata a um título estadual. E tem até um decálogo a enfrentar com mandamento como estes: "sorrir sempre, mesmo que a situação não seja favorável; não desconfiar das colegas, mesmo se pensa que tem alguma razão para isso; obedecer a uma disciplina rígida, para evitar comentários maledicentes..."
A grande escravidão, entretanto, é a escravidão do relógio. Ela tem de cumprir cansativos programas como jantares, desfiles, coquetéis, festas e entrevistas, sempre feliz, sempre sorrindo. Mas o pior de tudo é que a sua presença em qualquer lugar é quase sempre paga. Assim, se vai a uma cidade de interior desfilar em um clube, ou simplesmente comparecer a uma festa, ela sabe que os patrocinadores cobrarão a sua presença. "E é aí que a coisa perde mesmo a graça", diz Carmen Silvia. Quando a gente é tão bem recebida e sorri de verdade, há sempre a certeza de que alguns sentem que compraram o sorriso. e isto é muito triste".
Mais triste que essa escravidão só mesmo o desfile de debilidades que se ouvem num concurso desse tipo, quando a maioria das misses diz coisas estereotipadas como "li o Pequeno Príncipe e gostei muito, acho o Glauber genial, claro que eu casaria com o Pelé, vou fazer o possível para representar bem o Brasil, o Rio é uma cidade muito maravilhosa" e o inefável "espero não ter decepcionado".
Ângela Vasconcelos, Miss Paraná e Miss Brasil 1964

Mas além de Carmen Silvia, só Ângela Vasconcellos, Miss Brasil 1964 fala com decepção do título: "Arrependo-me  amargamente daquele gesto impensado. Fui candidata pensando em viajar, porém acabei metida em festas mundanas quando preferia estar em casa, lendo um bom livro".
As outras, todas, desde Marta Rocha, Miss Brasil 1954, preferem esquecer os problemas de carregar o título e se contentar em lembrar que "tudo foi um sonho". E de todas, inclusive as duas que chegaram a Miss Universo - Martha Vasconcellos, atual e Ieda Maria Vargas, em 1963 -, a que conseguiu uma unanimidade nacional foi  Marta Rocha. vice Miss Universo por causa das duas polegadas a mais nos quadris, frustração nacional que se somou ao título de vice na Copa de 1950.
"Fui membro de júri de concursos em algumas cidades do interior e o que vi foram detalhes bonitos - pernas, rostos, braços, bustos -, mas não uma beleza total. No final, acabam vencendo as meninas que representam mais de perto o tipo padrão da mulher brasileira, estilo Garota de Ipanema - estatura média, corpo roliço, muito busto, muito quadril, cabelos pretos e lisos" - afirma o costureiro paulista Ronaldo Ésper, um profissional que acha "a mulher alta, sadia, exuberante, pele sempre queimada, pernas longas, corpo flexível e dedos compridos", o tipo de beleza padrão de hoje. Um tipo como se vê, distante das misses, que, segundo ele, "tem bustos e quadris à moda antiga".
Quanto aos detalhes bonitos, as próprias misses veem fragmentadas. É o que diz a jornalista e psicóloga
Carmen Silva, que já confessou espantada diante da "visão dissociada e fragmentária que elas têm do próprio corpo, pois dizem sempre o nariz, o busto, os tornozelos, em tom de vaidade impessoal, coisificando-os". Entretanto, o que a estarrece é "a futilidade, o narcisismo e a ambição desmedida" que encontrou em muitas misses e aspirantes. Para ela, "poucas têm a inteligência e o humor de Martha Vasconcellos", uma miss que a surpreendeu. A maioria tem o espírito de uma candidata estadual de 1967, tida e havida como muito espirituosa e que tinha mania de colocar apelidos  nas colegas. Perguntada sobre o apelido que colocava em Miss Bahia, respondeu contentíssima: "Miss Laranja". Quando lhe perguntaram porque, saiu-se assim: "Ah! É que ela come muita laranja..."
A Socila, escola de modelos do Rio de Janeiro, que ajeita as misses para o concurso de Miss Brasil, informa que a Miss, plasticamente, deve representar o ideal da juventude, com uma altura acima da média, entre 1,65m, e 1,70m, mesma proporção de busto e quadris, cintura não muito fina, mas bem delineada, coxas, pernas e tornozelos bem proporcionados e sem músculos ou gorduras localizadas, joelhos delicados e pés de qualquer tamanho: pequenos ou grandes, não importa". Já o cirurgião plástico Marcos Szipilman, do Rio de Janeiro, contraria a Socila. Ele acha que a mulher de hoje deve ser alta, entre 1,70m e 1,80m, magra sem exagero, com busto tendendo para o pequeno - sem que seja inexistente - extremidades longas e quadris proporcionais aos ombros, sem serem iguais a eles.
Embora o próprio concurso de Miss Universo já tenha alterado seus padrões de escolha a ponto de eleger uma tailandesa e uma japonesa e de abandonar os tipos nórdicos de rosto oval, há padrões que permanecem rígidos, segundo os organizadores, tais como o padrão intelectual e o padrão moral. Elas têm de falar mais de uma língua, o que não impediu a nossa Ieda Maria Vargas, apresentada em Miami como professora de inglês, de atender sempre os repórteres americanos com a palavra única "yes", o que lhe valeu alguns embaraços. Nem evitou que uma miss estadual americana já coroada, fosse surpreendida com a exibição da sua certidão de divórcio. Há ainda o muito citado padrão ético, que também não evitou a coroação de Adalgisa Colombo, Miss Brasil 1958, que anteriormente desfilara como modelo de Canadá Modas, no Rio de Janeiro (o regulamento veta a participação de manequins).
O Brasil é o único país do mundo em que 40000 pessoas são capazes de se reunir num estádio para assistir a uma eleição de Miss. Mesmo assim, o interesse vem caindo. Na última escolha de Miss Guanabara apenas 3000 pessoas foram ao Maracanãzinho ver o desfile, enquanto em São Paulo, onde nunca houve grande interesse pelo concurso, parte das entradas chegou a ser distribuída gratuitamente. Ainda assim, a imprensa gasta com o assunto um espaço de decisão de campeonato de futebol ou de carnaval. Nos Estados Unidos, os grandes jornais usam um máximo de dez linhas com a eleição da Miss Universo (na escolha do ano passado, o "New York Times" gastou 32 palavras e uma pequena foto na página 24, para contar que a vencedora fora a brasileira Martha Vasconcellos. E o vespertino "New York Post" ocupou apenas seis linhas). E quando gastam muito espaço, como há anos fez a revista "Esquire", é para atacar o concurso e apontá-lo como "explorador de moças desprevenidas".
Já nos últimos anos, um sinal de que o concurso se estava tornando anacrônico apareceu no Maracanãzinho, onde policiais têm que ficar atentos nos intervalos para evitar o desfile das "bonecas": homossexuais que sobem à passarela e a atravessam correndo e aos gritos, sob vaias gerais.


Maria Lúcia dos Santos, Miss São Paulo 1969, 2º lugar no Miss Brasil  no mesmo ano


Raiolanda Castello Branco, Miss Pernambuco 1966

Tavares de Miranda, colunista social de São Paulo, é um dos poucos cronistas capazes de atacar o concurso. Diz: "Tudo isso é uma grande besteira, uma debilidade mental e todo o interesse despertado é bem próprio dos países subdesenvolvidos". Ele acha que o concurso está bem distante da mulher brasileira, a quem a esteticista Janine Goossens, dá as seguintes médias: 1,68m, 94cm de busto e quadris e 62cm de cintura. Com certeza que uma profusão de medidas, levadas muito em conta no concurso, e o ambiente de feira de amostras que levaram o antigo bispo de Cuiabá, Dom Aquino, a afirmar o seguinte julgamento: "O que é concurso de beleza senão a exposição e feira de belos animais, que disputam entre si o prêmio por seus mais belos músculos ou robustez?" A resposta poderia ser dada por Maria Lúcia dos Santos, Miss

São Paulo 1969: "Estou tão feliz com o título, que não tenho nada a dizer". Ou pelas lágrimas de Raiolanda Castello Branco, Miss Pernambuco 1966, a mais vaiada de todos os tempos, que saiu da passarela correndo, chorando e lamentando: "Eu não tenho culpa de me chamar Raiolanda".


Fonte: Revista Veja, ed. 43, 02 de julho de 1969 - págs. 51/52/53.

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