17 de agosto de 2014

E Agora, José?

Agora, não faz sentido procurar por um novo Carlos Drummond de Andrade. O papel da literatura, em qualquer idioma, diminuiu muito. E cada época produz não só os seus talentos como também a balança com que se deve pesá-los.

Intimidade: o poeta mineiro em sua casa, no Rio, em 1986, versos transformados em bordões incorporados ao dia a dia do cidadão comum.

O poeta morreu no dia 17 de agosto de 1987. Do ponto de vista de um novo século, é tentador afirmar que a própria poesia - como a literatura em geral - não demoraria a seguir seus passos. Essa afirmativa, por conter um exagero, requer explicação. Uma reportagem de capa como a que VEJA fez quando da morte de Carlos Drummond de Andrade dificilmente será reeditada com um de seus colegas de ofício na hora que lhes chegar a "indesejada das gentes" (para usar a expressão de outro monumento pético brasileiro, Manuel Bandeira). Ou mesmo, para citar um gênero mais próximo do gosto popular, com um de nossos romancistas.
Poemas e romances ainda são escritos, claro, em quantidade inédita e, em certos casos, com boa qualidade. Contudo, já não ocupam na cultura a posição central e ressoante que permitiu a Drummond entranhar imagens e bordões na linguagem comum de todo um povo? "Tinha uma pedra no meio do caminho", E agora, José?", "seria uma rima, não seria uma solução". Ou elaborar, numa voz ambiciosa e menos acessível ao grande público, mas não menos impressionante, um poema filosófico como a Máquina do Mundo, do livro Claro Enigma, de 1951. Nesse candidato ao pódio poético da língua portuguesa em qualquer época, o poeta caminha por uma estrada de Minas quando vê se abrie à sua frente "essa total explicação da vida, / esse nexo primeiro e singular / que nem concebes mais, pois tão esquivo / se revelou ante a pesquisa ardente / em que te consumiste...". Todos esses exemplos são citados no necrológio de VEJA.
Procurar no século XXI o "novo Drummond" seria como esperar pelo "novo Pelé": um despautério. Se a constatação é indiscutível, críticas simplistas que a atribuem à suposta decadência da cultura (e do futebol) no país deixam de levar em conta o fato de que, em cada época, a máquina do mundo gabrica não apenas seus produtos, mas também a balança com que se deve avaliá-los. Na cultura globalizada, informatizada, pós-industrial, o peso da literatura diminuiu tanto que apregoar sua morte tem sido um dos estratagemas preferidos de críticos acadêmicos e midiáticos em busca de uma aura radical e povocadora que, pela repetição, acaba provocando apenas bocejos. O fenômeno não se restrige ao Brasil. Se não temos mais um escritor do tamnho de Carlos Drummond de Andrade ou Guimarães Rosa, também não surgiram na literatura francesa um novo Albert Camus nem na Argentina um Jorge Luís Borges internértico ou nos EUA um William Faulkner redivivo.

 

Raridade: em 2010, Jonatah Franzen, que então lançava o romance Liberdade, foi parar na capa da Time. Pela primeira vez em uma década um escritor aparecia com tanto destaque na revista americana - o último tinha sido Stephen King, em 2000. A presença de Franzen provocou estranhamento. Literatura?

Em 2010 a revista semanal americana Time estampou na capa uma foto do escritor Jonathan Franzen, que então lançava o romance Liberdade, com o seguinte título: "Grande romancista americano". Pela primeira vez em dez anos, para pasmo geral, um profissional das letras ia parar na cobiçada vitrine da revista. Franzen foi escolhido para isso quando tinha então 50 anos, a mesma idade de John Updike em 1982, ao cehgar à capa da mesmíssima Time. Não era por falta de experiência ou talento que sua presença ali provocava um estranhamento que a de Updike não provocara. é que, naquelas três décadas, a máquina do mundo tinha alterado as especificações da balança.
Uma das melhores reflexões  sobre esse rebaixamento cultural da literatura é do crítico e escritor italiano Claudio Magris. "Desde seu nascimento - ou seja, desde o romantismo ou já no fim do século XVIII -, a literatura contemporânea é marcada pelo sentimento de uma ferida profunda que a história parece ter inflingido  ao indivíduo, impedindo-o de realizar plenamente a própria personalidade em acordo com a evolução social e fazendo-o sentir a impossibilidade e a ausência da vida verdadeira, o exílio dos deuses e a fragmentação de sua própria exstência", escreve Magris, parecendo falar do próprio Drummnd. E conclui: "Agora tudo isso parece findo:  um karaokêem diversos níveis suplantou toda utopia e toda revolução e, como previra Nietzche, o próprio homem está mudando radicalmente". O pior é que o maior poeta brasileiro já não pode traduzir para npós todo esse burburinho.

 

Dois Encontros com a Morte (26 de agosto de 1987)

"Em apenas doze dias, o poeta Carlos Drummond de Andrade esteve duas vezes no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio de Janeiro", dizia a abertura do texto de VEJA que tratou da morte do escritor itabirano, aos 84 anos. Na primeira, explicava a revista, fora para enterrar "a pessoa que mais amava, a filha Maria Julieta". Na segunda vez, foi para ser, ele mesmo enterrado: "Achando bárbaro o espetáculo da morte da filha, o poeta delicado preferiu morrer". Em dez páginas, VEJA sintetizou a vida, a obra e o legado de um dos mais singulares autores da língua portuguesa, com poucos, raros rivais - no seu ou em qualquer outro século.
TRECHO: "Contra a luxuriante paisagem tropical, o verso de Drummond contrapõe o sono rancoroso dos minérios, os peixes cegos do tempo, o medo que esteriliza os abraços. Ele nega a grandiloquente e flasa festa da vida para procurar apewnas o vivo, 'o pequenino calado, indiferente e solitário vivo'. Terrível no que tem de desespero e bela por transformar esse mesmo desespero em germe de esperança, a obra de Drummond nega o deserto da vida literária brasileira. Ela é a flor furando o asfalto das corriolas de vates que trocam tapinhas nas costas, elogios e favores".

Texto retirado da Revista VEJA Especial 45 anos - Setembro de 2013.       

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